Espuma dos dias — Quando o fundamentalismo de mercado supera o senso comum: o mito dos mercados de eletricidade. Por Prabir Purkayastha

Seleção e tradução de Francisco Tavares

8 m de leitura

 

Quando o fundamentalismo de mercado supera o senso comum: o mito dos mercados de eletricidade

 Por Prabir Purkayastha

Publicado por  em 11 de Setembro de 2022 (original aqui)

 

O preço da eletricidade aumentou astronomicamente na Europa nos últimos dois anos: quatro vezes em relação ao ano anterior e dez vezes nos últimos dois anos. A UE tentou alegar que esse aumento dos preços se deve ao aumento do preço do gás no mercado internacional e ao facto de a Rússia não fornecer gás suficiente.

Isto levanta a questão crítica: porquê – por exemplo – o preço da eletricidade alemã deveria aumentar quatro vezes quando o gás natural contribui com apenas um décimo da sua produção de eletricidade? Porquê o Reino Unido, que produz metade do gás natural que consome, também vê um aumento acentuado no preço da eletricidade? Toda esta conversa sobre a Rússia esconde a realidade de que os produtores de eletricidade estão a fazer lucros astronómicos.

Os consumidores mais pobres, já empurrados contra a parede pela pandemia, enfrentam um dilema cruel. Uma vez que as contas de luz podem consumir 20-30% do seu orçamento familiar durante o inverno, devem comprar comida ou manter as suas casas quentes?

Este aumento acentuado nos preços da eletricidade é a outra face da moeda das chamadas reformas de mercado no setor elétrico nos últimos 30 anos. O custo da electricidade está ligado ao fornecimento mais caro à rede nos leilões diários e horários. Isto é o fundamentalismo de mercado, ou o que os economistas neoclássicos apelidam de teoria marginal da utilidade. Para os interessados em história, esta foi a reforma de Pinochet no Chile para o sector elétrico. O guru destas reformas de Pinochet foi Milton Freedman. O preço da eletricidade ser baseado no seu “preço marginal” era mesmo uma parte da Constituição de Pinochet no Chile. As reformas chilenas levaram à privatização do seu sector elétrico, objetivo destas reformas.

Foi o modelo chileno que Margaret Thatcher copiou no Reino Unido (RU). No RU foi desmantelada a Central Electricity Generating Board (CEGB), que administrava toda a infraestrutura elétrica do RU: geração, transmissão e distribuição exceto aos consumidores finais. Também substituiu o carvão obtido no país para as centrais térmicas por carvão importado, quebrando o poderoso sindicato dos mineiros de carvão. Estas também foram as “reformas” do mercado da Enron na Califórnia que levaram ao colapso da sua rede em 2000-01.

Na Índia, pode-se pensar que estas questões não têm nada a ver connosco. Afinal, geramos a nossa eletricidade em grande parte a partir do carvão obtido internamente, dos rios (hidroeletricidade) e agora das renováveis. Então, por que nos devemos preocupar com o que está a acontecer na Europa e com o preço do gás natural?

Eis porque devemos refletir sobre isto novamente. As atuais “reformas” de distribuição que o governo indiano quer introduzir são uma réplica do que o RU e a UE fizeram. A Lei de Eletricidade de 2003, abriu as portas ao capital privado na energia, que pediu elevados empréstimos aos bancos do sector público para adquirir e criar um grande número de centrais. Com a oferta a superar a procura, são os bancos e instituições que providenciaram os empréstimos que sofreram enormes perdas, escriturando-os como empréstimos maus.

O outro aspeto de se terem introduzido as empresas privadas foi transferir para as empresas de distribuição estatais o encargo da compra de energia elétrica a alto custo. Isto é evidenciado nas elevadas perdas das distribuidoras estatais. Como os governos estaduais têm que enfrentar o povo, eles são forçados a comprar energia, mesmo energia cara, e fornecê-la aos agricultores e consumidores domésticos. Para garantir alguma estabilidade de preços, eles compram a maior parte da sua eletricidade usando contratos de longo prazo e apenas uma pequena quantidade a partir dos leilões diários.

A nova Emenda à Lei da Eletricidade, apresentada agora à comissão parlamentar permanente de energia, propõe o que nenhum país tentou: separar a propriedade da eletricidade dos cabos por onde ela flui. Enquanto os governos estaduais manterão toda a infraestrutura de distribuição, a eletricidade que flui através dela será propriedade dos comerciantes que compram e vendem energia elétrica no “mercado”. Embora os governos estaduais continuem a ser responsabilizados pelo povo, não terão nenhuma capacidade de controlar o preço ou fornecer eletricidade às suas populações.

Como serão então fixados os preços da eletricidade nesses mercados? Serão baseados no preço marginal da eletricidade, fixado através de leilões, o mesmo que causou a atual crise na UE e no RU.

O objetivo das reformas da UE não era um setor elétrico mais eficiente, mas a privatização das companhias de electricidade. Antes das reformas da UE, cada um dos principais países, como a França e a Alemanha, tinha uma rede integrada com as principais empresas estatais que geravam, transportavam e distribuíam eletricidade. As principais empresas estatais definiam as regras da rede. A UE quis privatizar o sector elétrico e daí as reformas para separar a geração, a transmissão e a distribuição. Embora a transmissão e a distribuição tenham sido aceites como monopólio natural e permanecido com o Estado, a produção foi privatizada e as empresas obrigadas a competir entre si em toda a rede da UE.

Como fazer os produtores competirem quando a geração e o fornecimento de eletricidade têm que se equilibrar em cada momento e, portanto, precisam ser operados em cooperação? Anteriormente, a rede atuava de forma a equilibrar a carga fornecida e a procura, aumentando primeiro as fontes mais eficientes quando a oferta era insuficiente, e suprimindo as menos eficientes quando a oferta excedia a procura.

Em vez do sistema que então existia, os reguladores da UE substituíram-no por um mercado artificial em nome das chamadas reformas de mercado. O mercado está estruturado para que se possa licitar com antecedência para vender uma quantidade de energia num determinado horário. Vamos supor que existem 24 faixas horárias de uma hora cada dia, assim cada produtor pode citar o seu preço para fornecer uma quantidade de eletricidade num horário específico. O mais alto preço que satisfaz a procura total desse intervalo de tempo, torna-se o preço para todos os licitantes que citam até esse preço.

O que acontece se os preços dos vários modos de geração forem significativamente diferentes e se precisar de uma produção cara para satisfazer a totalidade da sua procura? Então, a energia produzida a partir do vento ou do sol, cujos custos marginais são praticamente zero, é cobrada exatamente ao mesmo preço que o GNL caro necessário para atender a procura total.

A UE utilizou fortemente o gás natural como o seu combustível preferido para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, aumentou a energia renovável – solar e eólica – e eliminou gradualmente a lenhite e o carvão. Impôs uma série de sanções, tornou público seus planos para novas sanções à Rússia e apreendeu cerca de 150 mil milhões de euros das reservas da Rússia nos bancos da UE. A UE também tornou público seus planos de cortar o fornecimento de petróleo e gás da Rússia. Não surpreende que a Rússia tenha reduzido drasticamente o fornecimento de gás para a UE. Se o Ocidente pensou que poderia utilizar o seu poder financeiro como arma de guerra, por que acharam que a Rússia não retaliaria com seus fornecimentos de gás para a UE?

Com a queda do fornecimento de gás natural da Rússia para a Europa Ocidental, o preço do GNL aumentou acentuadamente no mercado internacional. Pior, simplesmente não há GNL suficiente disponível no mercado para substituir o gás que a Rússia fornecia à UE através dos seus gasodutos.

Com o preço do gás a subir 4 a 6 vezes nos últimos meses, o preço da eletricidade também aumentou acentuadamente. Mas como apenas uma fração da eletricidade é alimentada por gás, todas as outras – eólica, solar, nuclear, hidroelétrica e até mesmo centrais a carvão – estão a fazer grandes lucros. Só agora a UE e o RU estão a discutir como lidar com as consequências dos altos preços da eletricidade sobre os consumidores e os astronómicos lucros dos produtores de eletricidade.

Não são apenas os consumidores da UE e do RU que são gravemente atingidos. São também as indústrias europeia e britânica. As indústrias de aço inoxidável, fertilizantes, fabricação de vidro, alumínio e de engenharia são todas muito sensíveis aos custos energéticos. Como resultado estão a fechar na UE e no RU.

O ex-ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, em seu artigo Time to Blow Up Electricity Markets, escreve: “O setor elétrico da União Europeia é um bom exemplo do que o fundamentalismo de mercado tem feito às redes elétricas em todo o mundo… É hora de acabar com os mercados simulados”.

Porquê então o governo Modi corre para este abismo? Não aprendeu com a experiência do ano passado, quando os preços no mercado de referência da eletricidade foram para 20 rupias por unidade, antes do clamor público tê-lo limitado a 12 rupias? Então, para quê novamente pressionar com vista a essas políticas falidas do fundamentalismo de mercado sob o pretexto de reformas elétricas? Quem beneficiará dessas reformas de mercado? Certamente, nem os consumidores nem os Estados.

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O autor: Prabir Purkayastha [1949-] é um escritor, engenheiro, jornalista e activista científico indiano. É o fundador e editor-chefe do portal de notícias digitais da Índia, NewsClick. É também presidente do Movimento de Software Livre da Índia desde 2017 e fundador do Fórum Científico de Deli. (ver aqui)

 

 

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